Ana Sílvia Homenko
Enfermeira do Ambulatório de Urologia. Mestre pela
Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias.
Maria Alice dos Santos Lelis
Enfermeira do Ambulatório de Distúrbios da Micção.
Doutoranda do Programa de Ciências da Saúde - Disciplina de Urologia.
José Cury
Doutor em Urologia. Chefe de Clínica da Disciplina de
Urologia.
Disciplina de Urologia da Universidade Federal de São Paulo
- Unifesp-EPM.
Em pacientes ambulatoriais uma simples cateterização vesical
estéril ocasiona infecção do trato urinário (ITU) de 0,5% a 1%. Contudo, esta
incidência aumenta de modo marcante em pacientes hospitalizados, com risco de
ITU de 10% a 20% em mulheres, progredindo diariamente na ordem de 4% a 7,5% ao
dia.
Este é um dos procedimentos invasivos mais freqüentes no
meio hospitalar e algumas práticas de uso comum devem ser revisadas à luz de
resultados de estudos científicos. Entre suas principais indicações,
encontramos: drenagem urinária, mensuração de débito urinário em pacientes
críticos, irrigação vesical em pacientes que apresentam obstrução (ex:
coágulos, cálculos ou tumores) ou em pós operatório de cirurgias urológicas,
instilação de medicamentos como dimetilsulfóxido (DMSO·) em pacientes
portadores de cistite intersticial ou ONCO BCG como imunoterapia no câncer de bexiga.
Este procedimento trouxe, juntamente com os benefícios,
problemas e riscos potenciais associados à manipulação do trato urinário, sendo
a infecção urinária a que ocupa o primeiro lugar dentre as infecções
hospitalares.
Como toda prática que tem resistido ao tempo e que vem
acompanhando a evolução da medicina, o cateterismo urinário fica sujeito a
conceitos ora verdadeiros, ora infundados. O objetivo deste texto é discorrer
sobre alguns mitos e verdades relacionados à indicação do cateterismo, técnica
de cateterização, cuidados com a manutenção do cateter, do sistema coletor de
urina e prevenção de infecção associada ao uso de cateteres urinários.
Indicação do cateterismo urinário
Durante muito tempo acreditou-se que a melhor forma de
tratar pacientes com bexiga neurogênica ou pacientes que apresentavam
incontinência urinária, seria a utilização de cateteres urinários de demora.
· Sabemos
hoje que o cateterismo vesical intermitente beneficia uma série de pacientes
com bexiga neurogênica e é considerado como a melhor solução para o
esvaziamento da bexiga nos pacientes com disfunção vesicoesfincteriana que
apresentam grande capacidade funcional da bexiga e alta resistência uretral(1).
Este recurso está indicado para eliminar a urina residual, ajudar a prevenir a
infecção urinária, evitar a incontinência urinária e mesmo as lesões do trato
urinário superior(2), além de diminuir a incidência de formação de cálculos
vesicais e mimetizar o processo normal de micção.
· Pacientes
com incontinência urinária podem ser adequadamente tratados através de drogas,
terapia comportamental e reabilitação do assoalho pélvico ou intervenção
cirúrgica, conforme o tipo de incontinência. Nos casos considerados refratários
ao tratamento, o paciente pode ser beneficiado com orientação para o uso de
cateteres tipo "condom", absorventes urinários ou proteção da pele
perineal(3).
Técnica de cateterização
Há consenso quanto à necessidade de se utilizar material
estéril na inserção do cateter urinário de demora com técnica rigorosamente
asséptica, entretanto, os cuidados relacionados à técnica devem ser discutidos:
· Em
relação ao uso de lubrificantes para a introdução do cateter urinário, alguns
serviços ainda utilizam substâncias oleosas, como a vaselina estéril. A
literatura relata alguns casos de embolia gordurosa devido à absorção de
substâncias oleosas(6) e recomenda a utilização de substâncias hidrossolúveis,
como a lidocaína geléia a 2%. Nos pacientes do sexo masculino, sugere-se a
instilação uretral de 15 a 20 ml, enquanto que, nas pacientes do sexo feminino,
esta lubrificação pode ser realizada diretamente no cateter urinário.
Figura 1 - A) Balão de retenção locado corretamente na
bexiga; B) Notar extremidade do cateter dentro da bexiga e o balão abaixo do
colo vesical.
· A
drenagem de urina pelo cateter pode ser utilizada na verificação da posição
intravesical da extremidade do cateter. Porém, em pacientes do sexo masculino,
recomenda-se introduzir o cateter até a extremidade distal para se confirmar
que o balão de retenção esteja dentro da bexiga, inviabilizando sua insuflação
na uretra. Se, por imperícia, a extremidade proximal do cateter não atingir o
oco vesical, permanecendo na luz da uretra posterior, ao ser insuflado o balão,
ocasionaremos traumatismo uretral, causa de graves seqüelas (Figuras 1A e 1B).
· O
enchimento do balão de retenção, na extremidade do cateter, é algumas vezes
realizado com solução fisiológica (SF a 0,9%). Recomenda-se hoje a utilização
somente de água destilada no balão de retenção, uma vez que soluções salinas ou
com outros eletrólitos, trazem o risco de cristalização após longos períodos o
que pode dificultar a deflação do balão ao tentar-se retirar o cateter. O
enchimento do balão com ar também não é recomendado, uma vez que pode ocorrer a
saída espontânea do ar, resultando em deflação precoce do balão de retenção e
conseqüente saída do cateter(7).
· Alguns
profissionais acreditam que quanto maior o volume introduzido no balão de
retenção, menor a chance de o paciente perder, acidentalmente o cateter.
Estudos demonstram que insuflar o balão com 5-10 ml de água destilada é
suficiente. Sabe-se que a hiperinsuflação pode causar irritação do colo
vesical, levando a contrações involuntárias da bexiga e possíveis perdas
urinárias pericateter; além disso o peso do balão pode levar à lesão do colo
vesical(4).
· Como é
de conhecimento, a sonda de Foley, no paciente do sexo masculino, uma vez
instalada, deve ser fixada no abdômen (Figura 2), de modo a evitar a
escarificação da uretra no ângulo penoescrotal e mesmo a lesão do colo vesical
por deslocamento abrupto do balão quando pacientes agitados ou desorientados
flexionam e estendem a coxa de modo descoordenado(8).
Quadro 1
Pontos técnicos na cateterização vesical de demora
· Utilizar
material estéril na inserção do cateter urinário de demora, com técnica
rigorosamente asséptica
· Escolher
cateteres de menor calibre (12F a 16F*) que permitam uma boa drenagem urinária
· Cateteres
calibrosos (20F a 24F) estão indicados em procedimentos urológicos passíveis de
formação de coágulos
· Utilizar
substâncias hidrossolúveis na lubrificação uretral
· Em
pacientes do sexo masculino, introduzir o cateter até sua extremidade distal
para se confirmar que o balão de retenção esteja dentro da bexiga
· Utilizar
somente água destilada no balão de retenção
· Insuflar
o balão de retenção com 5-10 ml de água destilada
· Em
pacientes do sexo masculino, o cateter deve ser fixado no abdômen.
* Um French (F) corresponde a 1/3 de mm. Exemplo: 12F = 4 mm
Figura 2 - Fixação da sonda uretral e sonda de cistostomia
no abdômen.
Cuidados com o cateter e sistema coletor de urina
Pacientes em uso de cateter vesical de demora requerem da
equipe de saúde prestação de cuidados especializados, evitando complicações
decorrentes da sua utilização.
· Durante
muito tempo se recomendou, como cuidado com o cateter urinário, a limpeza do
meato uretral duas vezes ao dia, com soluções como polivinilpirrolidona-iodo
(PVPI). No entanto, o Center for Disease Control and Prevention (CDC), após a
realização de estudos comparando a utilização do PVPI com o uso de água e
sabão, concluiu que não há diferença na eficácia entre uma ou outra. Uma
cuidadosa higienização do meato uretral com água e sabão neutro, uma vez ao
dia, mostrou ser eficiente(5,9).
· Uma vez
documentada que a contaminação do tubo de drenagem pela via ascendente era a
mais provável fonte de contaminação, o sistema de drenagem começou a ser
substituído, no início dos anos 60, de sistema aberto para sistema de drenagem
fechado(7,10). Atualmente, os sistemas fechados de drenagem urinária utilizados
são bolsas plásticas descartáveis, que visam diminuir ainda mais a incidência
de infecção urinária, pela adição de alguns dispositivos como válvula
anti-refluxo, câmara de gotejamento e conduto para coleta de urina para exames.
· Quando
indicada a coleta de urina para cultura, era prática comum, devido à
simplicidade dos sistemas coletores utilizados, a desconexão do cateter do
sistema coletor fechado ou a perfuração de sua extensão. Atualmente, a grande
maioria dos coletores de urina de sistema fechado disponíveis no mercado possui
um dispositivo de látex auto-retrátil, especialmente desenhado para a coleta de
urina, bastando realizar uma cuidadosa assepsia com álcool a 70% e aspiração
local com seringa e agulha de fino calibre(4).
· A coleta
de urina para cultura deve ser realizada na vigência de sinais e sintomas de
infecção urinária(7). A monitorização bacteriológica de rotina não é
recomendada(9).
· São
cuidados essenciais na manutenção do cateter e bolsa coletora de urina,
observar cor, volume e aspecto da urina drenada, prevenir dobras ou tensões no
tubo extensor, manter a bolsa coletora abaixo do nível de inserção do cateter
urinário, prevenindo refluxo da urina para a bexiga, além de monitorar
rigorosamente sinais de infecção do trato urinário.
· Deve ser
rigorosamente evitada a desconexão entre cateter e sistema coletor, o que
indicaria a "quebra" do sistema fechado e oportunidade para a invasão
bacteriana. Segundo o CDC, a única indicação para a desconexão é a obstrução do
sistema(9).
· Com a
intenção de restaurar o tônus da bexiga após cateterização vesical prolongada,
é amplamente difundida a técnica conhecida como "treinamento
vesical", que consiste em manter fechado o cateter e abri-lo
periodicamente, antes de sua retirada. Esta prática não tem fundamento
científico, uma vez que a restauração do tônus vesical deveria ocorrer
naturalmente após a retirada do cateter, não havendo contribuição do
treinamento vesical neste processo. Quando isso não acontece, sugere
comprometimento do músculo detrusor, dificultando o esvaziamento vesical(4).
Quadro 2
Cuidados com o cateter e sistema coletor de urina
· Lavar as
mãos imediatamente antes e após a manipulação de cateteres e sistemas coletores
de urina
· Utilizar
sistemas fechados de drenagem urinária
· Realizar
higienização do meato uretral com água e sabão neutro, uma vez ao dia
· Colher
amostra de urina para cultura através do dispositivo próprio
· Colher
urina para cultura na vigência de sinais e sintomas de infecção urinária
· Observar
cor, volume e aspecto da urina drenada
· Prevenir
dobra ou tração no tubo extensor
· Manter a
bolsa coletora abaixo do nível de inserção do cateter urinário
· A única
indicação para a desconexão é a obstrução do sistema
· São
consideradas vias de acesso dos microrganismos para a bexiga: via extraluminal
- contaminação durante a cateterização e via ascendente periuretral e via
intraluminal - contaminação do sistema de drenagem
· A
necessidade de troca do cateter deve ser avaliada individualmente
· Remover
o cateter o mais precocemente possível, salvo exceções
Prevenção de infecção
A introdução de um cateter de permanência em um sistema
orgânico normalmente estéril facilita a entrada de microrganismos, levando à
infecção do trato urinário com significativo aumento na morbidade e mortalidade
em pacientes hospitalizados, além de acrescer os custos da hospitalização.
Os riscos potenciais de infecção urinária estão associados à
presença do cateter que, por constituir-se em um corpo estranho, facilita a
migração de microrganismos patogênicos que, somados à inadequação da técnica e
a predisposição do paciente, favorecem a instalação do processo infeccioso(11).
Em revisão sobre infecção urinária associada a cateteres(12)
são descritas as vias de acesso dos microrganismos para a bexiga em pacientes
utilizando cateter de permanência (Figura 3): contaminação durante a
cateterização, via ascendente periuretral (espaço extraluminal entre o cateter
e a luz da uretra) e contaminação do sistema de drenagem (intraluminal).
Com mais detalhes, Kunin(10) enumera os fatores que podem
contribuir para a entrada de microrganismos na bexiga: área periuretral
preparada de forma inadequada antes da inserção do cateter, falhas na técnica
asséptica ao introduzir o cateter, trauma ou escarificação da uretra por
pressão do meato devido ao uso de cateter calibroso, entrada de microrganismos
através da junção entre o cateter e o meato uretral, contaminação do sistema de
drenagem por desconexão do sistema e contaminação da bolsa coletora, com fluxo
retrógrado para a bexiga.
Apesar da importância epidemiológica da infecção urinária
associada a cateteres e da necessidade de medidas que possam diminuir esta
condição, algumas práticas realizadas com este objetivo, necessitam ser
revistas, uma vez que não encontram respaldo em estudos científicos.
· Por
muitos anos se acreditou que a irrigação vesical com medicamentos
antimicrobianos como a nitrofurazona poderia prevenir infecções urinárias.
Baseado na realização de estudos, o CDC não recomenda esta prática como rotina
na prevenção de infecções, que além de ineficaz, ainda proporciona a quebra do
sistema fechado, resultando em oportunidade para a entrada de
microrganismos(4,9).
Figura 3
· Acredita-se
que a quimioprofilaxia evita a ITU enquanto o paciente estiver cateterizado. No
entanto, o uso indiscriminado de antimicrobianos em pacientes cateterizados por
longos períodos leva à seleção de microrganismos resistentes(10). Na vigência
de sinais e sintomas compatíveis com ITU, deve-se solicitar urocultura e teste
de sensibilidade previamente à prescrição de antibióticos(9). Bredt et al.(13)
afirmam que, embora não constitua recomendação fortemente sugerida para
prevenção de ITU associada à cateterização vesical, o uso de antimicrobiano
profilático em pacientes sob cateterização intermitente vem sendo avaliado nos
últimos anos. Na prática médica, ministrar dose simples de antimicrobiano
(sulfametoxazol-trimetoprim) em qualquer cateterismo de esvaziamento vesical.
Weiser et al.(14) preconizam que pacientes cateterizados por longos períodos
devem ser tratados com antimicrobianos de largo espectro, por três a cinco
dias, somente se aparecerem sintomas de infecção.
· A rotina
de troca do cateter a cada sete dias com o objetivo de prevenir infecções
urinárias foi realizada durante um longo período nas instituições de saúde.
Atualmente o CDC recomenda que a troca do cateter deva ser avaliada
individualmente(9).
· Os
pacientes que necessitem de cateterização prolongada devem ser acompanhados por
profissionais de saúde para que a troca do cateter seja planejada, devendo ser
realizada na suspeita de obstrução intra ou extraluminal parcial ou total do
cateter. A obstrução do cateter por incrustações afeta cerca de 50% dos
pacientes submetidos à cateterização prolongada. Os cristais mais comuns na
incrustação do cateter são a estruvita (fosfato de amônio e magnésio) e o
fosfato de cálcio, que se precipitam em urina alcalina. A identificação dos
pacientes que apresentam maior facilidade para a formação de incrustações pode
ajudar no planejamento da troca do cateter, que comumente varia entre duas e
quatro semanas. Alguns autores recomendam, nos cateterismos de longa duração, o
uso de cateteres fabricados com silicone(5,10).
· Dentre
as recomendações para a prevenção de infecção urinária associada a cateteres, a
lavagem das mãos imediatamente antes e após a manipulação de cateteres e sistemas
coletores de urina deve ser considerada como imprescindível. Toda a equipe de
saúde deve conscientizar-se da importância desta medida simples, porém eficaz,
e incorporá-la a sua prática diária.
· É
importante lembrar que o cateter deve ser removido o mais precocemente
possível. A cateterização prolongada pode levar a complicações locais e
sistêmicas como: uretrite, abscesso uretral, cálculo vesical, cistite,
prostatite aguda ou crônica, epididimites, lesão na uretra bulbar por espasmo
do esfíncter externo no momento da cateterização, fístula retovesical,
insuficiência renal devido a pielonefrites de repetição e carcinoma
epidermóide.
· Temos
que ressaltar que todo e qualquer caso de pacientes cateterizados deve ser
avaliado individualmente quanto à retirada do cateter urinário. Como exemplo
podemos citar pacientes com traumatismo de bacia e lesão da uretra posterior,
que necessitam cateterismo de permanência prolongado e cuja remoção só poderá
ser realizada após avaliação do urologista.
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Fonte:http://www.moreirajr.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=2297