Considerado a terceira causa de
morte no mundo, perdendo apenas para as doenças cardiovasculares e o câncer, o
trauma atinge uma população jovem e em fase produtiva, tendo como consequência
o sofrimento humano e o prejuízo financeiro para o Estado, que arca com as
despesas da assistência médica e reabilitação, custos administrativos, seguros,
destruição de bens e propriedades e, ainda, encargos trabalhistas. Embora as
estatísticas mostrem incidência maior de trauma em grandes centros urbanos,
essa situação vem atingindo também municípios menores, principalmente aqueles
próximos às grandes rodovias. Essa situação reflete diretamente nos serviços
locais de saúde, havendo a necessidade cada vez maior de profissionais
qualificados para esse tipo de atendimento. Antes de prosseguir, desafiamos
você a responder a seguinte questão: “O que é trauma e quais as suas causas?”
O trauma é um evento nocivo
decorrente da liberação de uma das diferentes formas físicas de energia
existente. A energia mecânica é uma das causas mais comuns de lesões,
encontradas nas colisões de veículos automotores. Percebemos a presença da
energia química quando uma criança ingere soda cáustica acondicionada em uma
garrafa de refrigerante. A energia térmica pode ser dissipada no momento em que
um cozinheiro borrifa combustível na churrasqueira, aumentando a chama e
queimando a face. As lesões de pele são frequentes no verão, devido exposição à
energia por irradiação. A transferência de energia elétrica é comum quando
ocorre manipulação com fiação elétrica, provocando diferentes padrões de
lesões, como queimaduras (pele, nervos, vasos sanguíneos, músculos e ossos),
ejeção no momento da passagem da corrente elétrica levando à diferentes traumas
(cabeça, coluna, tronco e membros) e, ainda, arritmia, em algumas vezes,
seguida de parada
cardiorrespiratória devido a
liberação de potássio
na circulação sanguínea decorrente da lesão do músculo
cardíaco.
É classificado de forma
intencional quando há a intenção de ferir alguém ou a si próprio, e não
intencional quando as lesões são desenvolvidas devido a um determinado evento,
como queda da própria altura, desaceleração vertical (quedas de alturas duas ou
mais vezes maior que a altura do doente), afogamento, queimadura, colisão de
veículos, entre outros. Essa subclassificação é importante para que medidas
possam ser criadas e aplicadas nos ambientes e populações de risco com o
objetivo de diminuir a mortalidade e a morbidade provocada pelo trauma.
As fases da abordagem do paciente
vítima de trauma compreendem: avaliação da cena, acesso à vítima, avaliação
primária - A,B,C,D,E (onde são identificadas condições que colocam o cliente em
risco de vida iminente e são prontamente tratadas), extricação (remoção do
paciente), avaliação secundária - AMPLA (que deve ser realizada apenas se
paciente estável) e transporte.
Avaliar, controlar, não avançar,
é a máxima que se utiliza no atendimento de urgência e emergência. Identificar
necessidade de ações críticas e realizar manobras no momento certo é habilidade
chave no atendimento de doentes traumatizados.
Atualmente, o atendimento das
vítimas de trauma é realizado baseado no protocolo internacional denominado
Advanced Trauma Life Support (ATLS), criado pelo American College of Surgeons,
mundialmente conhecido pelo benefício que trouxe para o prognóstico do
traumatizado grave, consequentemente modificando as estatísticas de
morbimortalidade. O protocolo é utilizado para as diferentes faixas etárias,
respeitando as diferenças anatômicas, o peso e os parâmetros vitais.
Uma ordem de prioridades é
estabelecida para que sistemas vitais sejam avaliados e tratados. A - VIAS
AÉREAS (AIRWAYS) (PERMEABILIDADE DAS VIAS AÉREAS E CONTROLE DE COLUNA EM
PACIENTES COM HISTÓRICO DE TRAUMA): a obstrução de vias aéreas constitui
frequente causa de óbito em vítimas de trauma ou casos clínicos, ocasionados
por corpos estranhos, sangue, secreção, ou até mesmo a própria língua. A
suspeita de lesão medular deve estar presente sempre que o mecanismo de trauma
envolver uma energia significativa. A coluna cervical deve ser estabilizada
manualmente até a colocação do colar, da prancha longa e coxins laterais da
cabeça. Esses dispositivos só deverão ser retirados após rotina radiológica da
coluna e exclusão da lesão.
O colar cervical restringe apenas
o movimento de flexão e extensão do pescoço, não impedindo os movimentos de
lateralidade da cabeça. É um dispositivo a ser escolhido com critério, não
sendo pequeno a ponto de comprimir os vasos localizados na região cervical nem
grande a ponto de não cumprir com o objetivo para o qual ele foi criado e ainda
dificultar a abertura da via aérea.
Em primeiro lugar, é importante
observar que a presença de sangue, restos alimentares, dentes, ossos e a
própria queda da língua nas vítimas inconscientes provocam obstrução,
dificultando e/ou impedindo a chegada do ar até os pulmões. Clientes com comprometimento
do nível de consciência perdem o controle em manter a língua em uma posição
anatomicamente neutra, fazendo com que ela caia e obstrua a hipofaringe. O
tratamento consiste na retirada manual (varredura digital) do corpo estranho
sólido ou utilização de pinça maguil e aspiração do conteúdo líquido com sonda
de ponta rígida. A permeabilidade da via aérea é uma das prioridades do
atendimento nas vítimas inconscientes devido à queda da língua. Manobras
manuais são necessárias, como hiperextensão do pescoço a elevação do mento
(Chin lift) para as vítimas de trauma e colocação da cânula orofaríngea (COF) –
cânula de Guedel até que uma via aérea definitiva, através da intubação
orotraqueal e/ou cricotireoidostomia, possa ser realizada.
B - RESPIRAÇÃO (BREATHING): as
células necessitam de combustível para executar suas atividades (glicose e
oxigênio). A glicose fica armazenada para utilização gradual, enquanto o
oxigênio depende dos processos da respiração para serem disponibilizadas às
células (ventilação, difusão e perfusão), situações que comprometam tais
processos levam o cliente a sofrer alterações da função respiratória
(hiperventilação, hipoventilação e hipóxia). A avaliação da ventilação e
respiração identifica as lesões que comprometem a troca de gases e levam ao
sofrimento respiratório. O aumento da frequência respiratória e uso da
musculatura acessória devem chamar-lhe atenção. Outros sinais de
comprometimento respiratório podem estar presentes e identificados na
avaliação, como expansibilidade assimétrica, escoriações, hematomas e
ferimentos.
Na criança traumatizada, os
sinais iniciais de gravidade serão percebidos através do aumento da frequência
respiratória e de sinais de sofrimento como batimento de asa de nariz, uso da
musculatura acessória, tiragem intercostal, movimento de balanço da cabeça,
pele fria, pálida e da diminuição do nível de consciência. Esses sinais, se não
corrigidos, evoluem para a falência ventilatória e, finalmente, para uma parada
respiratória. Ao atendê-la, você deve providenciar a ventilação com
bolsa-máscara com fluxo unidirecional (AMBU) enriquecido com O2 e preparar o
material para a instalação de uma via aérea definitiva. A saturação arterial de
oxigênio deve ser mantida > 95%. É importante avaliar a respiração e a ventilação,
levando em consideração as alterações anatômicas e fisiológicas ocorridas com o
envelhecimento, associá-las aos outros fatores presentes, como medicamentos em
uso e antecedentes pulmonares, para entender a resposta do organismo do idoso
nas situações de trauma. Alguns idosos dependem do estímulo hipóxico para
manter a ventilação, sendo deletérias altas concentrações de O2 (DPOC).
Entretanto, naqueles com risco de sangramentos e com suspeita de lesão cerebral
traumática (LCT), o tratamento com O2 é obrigatório.
C - CIRCULAÇÃO (CIRCULATION): é
necessário identificar a presença de pulso (não só a presença, mais a qualidade
desse pulso: rítmico, arrítmico, fino, filiforme etc...), valor de pressão
arterial (no adulto: 120x80mmHg valor de referência) ou sinais indicativos de
choque (pele fria, pegajosa, pulso fino, filiforme, acrosianose (coloração
azulada da pele em extremidade), alteração do nível de consciência, taquipnéia
(aumento da frequência respiratória, parâmetro de normalidade: 12-20 irpm),
taquicardia (aumento da frequência cardíaca, parâmetro de normalidade:
60-100bpm no adulto).
Perdas expressivas de sangue são
consideradas o terceiro fator gerador de gravidade nas vítimas de trauma. Se
não identificada e tratada precocemente, evolui rapidamente para um quadro de
choque devido à perfusão inadequada dos tecidos. O óbito pode acontecer
rapidamente ou tardiamente devido má perfusão de órgãos vitais, levando-o à
falência. Alguns sinais são sugestivos de sangramentos, sendo percebidos por
você durante a avaliação, como pele pálida, fria e úmida, perfusão periferia
lentificada (> dois segundos) e taquicardia. O pulso periférico ausente
indica um estado mais avançado do choque/ choque descompensado. Nos
sangramentos visíveis, a iniciativa de contê-los é imediata, contudo, a perda
já ocorrida deve ser quantificada e valorizada. Para minimizar os danos
causados pela hemorragia, medidas devem ser adotadas rapidamente, como
oxigenação adequada com máscara de O2 de 10-12 litros/minuto (avaliar caso a
caso principalmente nos doentes vítimas de TCE), instalação de dois acessos
venosos calibrosos (Jelco 16-14), infusão de dois litros (adultos) e 20 ml/kg
(crianças) de solução cristalóide (Solução Fisiológico 0,9% ou Ringer Lactato)
aquecidos a 37-42ºC. Aproveite para coletar amostras de sangue para tipagem
sanguínea, provas cruzadas e teste de gravidez em mulheres. Se o cliente
evoluir para um quadro descompensado, haverá maior dificuldade de punção venosa
devido à vasoconstrição periférica.
D - AVALIAÇÃO DO DÉFICIT
NEUROLÓGICO (DISABILITY): a avaliação deve ser sucinta, verificando o nível de
consciência e as pupilas quanto ao seu tamanho (midríase = pupilas dilatadas/
miose = pupilas contraídas), simetria (simétricas/assimétricas) e fotorreação =
reação a luz.
A alteração do nível de
consciência na avaliação inicial da vítima de trauma, acompanhada ou não de
alterações do diâmetro e reatividade das pupilas, está associada ao sofrimento
neurológico, seja por hipóxia ou lesão primária do cérebro em decorrência da energia
recebida. De qualquer maneira, são parâmetros importantes que, se não
corrigidos, acabam por responder pela mortalidade e, com maior frequência,
pelas sequelas neurológicas.
Método AVDI
A - alerta
V - responde a estímulo verbal
D - responde a estímulo doloroso
I - nenhuma resposta
Obs: pupilas de tamanho iguais
são denominadas de pupilas isocóricas, pupilas de tamanhos diferentes são
denominadas de anisocóricas.
E - EXPOSIÇÃO DO CORPO DA VÍTIMA
(EXPOSURE) E CONTROLE DA HIPOTERMIA: o paciente deve ser despido para que sejam
pesquisados outros sinais que podem não ter sido observado na primeira
avaliação, atentando para a prevenção da hipotermia (temperatura corporal
abaixo dos parâmetros de normalidade/parâmetro de TA=Temperatura axilar: 35,2 -
37,5 ºC).
Algumas lesões podem passar
despercebidas se não investigadas. Nesta etapa, você é responsável em expor o
cliente, retirando suas vestes, cortando-as com tesoura, evitando movimentar a
coluna e os membros. Exponha apenas a área a ser examinada, permanecendo ao seu
lado durante esta etapa da avaliação. Tome cuidado, pois as lesões de nervos,
vasos e ligamentos podem se agravar na retirada das vestes. Manter a
comunicação com o cliente antes de despi-lo, independente do nível de
consciência presente no momento, é muito importante. O biombo será muito útil
neste momento. Algumas lesões serão percebidas nesta etapa do exame, mostrando
o quanto de energia foi dissipada e alertando a equipe quanto à necessidade de
monitorar este cliente, até que todos os exames diagnósticos sejam feitos. Você
deve mantê-lo aquecido com manta térmica ou cobertores e também controlar a
temperatura do ambiente. O estado de hipotermia contribui para a piora do
prognóstico do cliente vítima de trauma, devendo ser evitado por todos os
profissionais envolvidos no atendimento pré e hospitalar. Outros procedimentos,
como o lavado peritoneal diagnóstico (LPD) e infusões venosas podem ser
realizados, utilizando-se soluções aquecidas como método de prevenção da
hipotermia. Alguns procedimentos realizados na fase de avaliação primária e
reanimação ajudam a prevenir complicações, tais como a sondagem gástrica, o
cateterismo vesical e a monitoração não invasiva da respiração.
Nem sempre a gravidade será
identificada na avaliação primária, pois algumas lesões ainda estão em
desenvolvimento, não mostrando alterações hemodinâmicas significativas, por
isso, é necessário que o cliente seja reavaliado continuamente nas etapas do
ABCDE, mantendo-o ainda devidamente monitorizado. Se for identificado qualquer
problema, é necessário iniciar a sua correção antes de iniciar a avaliação
secundária.
PROCEDIMENTOS REALIZADOS NA FASE
DE AVALIAÇÃO PRIMÁRIA E REANIMAÇÃO
CATETERISMO GÁSTRICO - é uma
medida utilizada para reduzir distensão abdominal e consequente risco de
aspiração. Quando há traumatismo craniano com suspeita de fratura da placa
crivosa (base de crânio), este procedimento deverá ser realizado por via oral.
O conteúdo drenado deve ser observado e registrado. Retorno sanguinolento pode
indicar trauma na hora da passagem, sangue deglutido ou, ainda, sangramento
gástrico.
CATETERISMO VESICAL DE DEMORA -
este procedimento é realizado com o objetivo de avaliar o tratamento instituído
nos quadros de choque hipovolêmico, na presença de hematúria (lesão renal ou de
bexiga) e ainda para esvaziar a bexiga antes de exames e/ou cirurgias. Está
contraindicado quando houver sangue no meato uretral, equimose perineal e na
suspeita de fratura pélvica (crepitação de bacia, deformidade e dor a
palpação).
Obs: os procedimentos
supracitados são de competência privativa do enfermeiro, no entanto o técnico
de enfermagem atua na seleção do material adequado e auxilio do enfermeiro na
realização dos mesmos.
MONITORAÇÃO NÃO INVASIVA DA
FREQUÊNCIA respiratória - feita por meio da gasometria e/ ou oximetria de
pulso, da pressão arterial e da frequência cardíaca.
AVALIAÇÃO SECUNDÁRIA
AMPLA
A avaliação secundária consiste
no exame físico detalhado, da cabeça aos pés (cefalopodálico), e as
reavaliações dos sinais vitais após a identificação e tratamento de todas as
lesões com risco de morte. A identificação de ferimentos, lacerações,
hematomas, edemas, crepitações, saída de líquidos (sangue/líquor) por orifícios
naturais, associado a alterações de parâmetros vitais e alteração dos
parâmetros neurológicos, contribui para a escolha do suporte necessário. Ainda
na avaliação secundária, você pode, através do protocolo “AMPLA”, obter junto
ao familiar e/ou socorristas informações sobre o cliente relacionadas à
alergias, medicamentos em uso, passado médico, líquidos e alimentos ingeridos,
e também o ambiente e eventos relacionados ao trauma. Após a avaliação
secundária e estabilização hemodinâmica, o cliente é encaminhado para a
realização de exames e procedimentos diagnósticos. Se o hospital não oferecer
recursos necessário para o diagnóstico e tratamento definitivo do cliente
traumatizado, todos os esforços deverão ser feitos para que a transferência
seja realizada o mais rápido possível, utilizando a regulação de vagas do SUS.
A – ALERGIA A MEDICAMENTOS E
ALIMENTOS;
M – MEDICAMENTOS DE USO HABITUAL;
P – PASSADO MÉDICO/HISTÓRIA DE
PRENHEZ;
L – LIQUIDOS E ALIMENTOS
INGERIDOS NAS ÚTIMAS 2 HORAS;
A – AMBIENTE EM QUE OCORREOU O
EVENTO.
Referências
ATLS. Suporte Avançado de Vida no
Trauma para Médicos. 7.ed.
Editora Elsevier , 2004.
NATIONAL ASSOCIATION OF EMERGENCY MEDICAL
TECHNICIANS. Atendimento Pré-hospitalar ao traumatizado. PHTLS.
Pre-hospital Trauma Life Support. 6ª ed. Rio de Janeiro. Elsevier. 2012.
MARTINS, SILVIO; SOUTO MARIA
ISABEL DUTRA. Manual de emergências médicas. Diagnóstico e tratamento. Rio de
Janeiro. Segunda reimpressão da 1ª edição. Revinter. 2012.