terça-feira, 28 de junho de 2011

Amidos para ressuscitação volêmica na UTI: ao vencedor, as batatas!

Ressuscitação com fluidos é parte fundamental do atendimento ao doente crítico.(1) A grande  maioria dos pacientes que adentra uma unidade de terapia intensiva receberá uma prova volêmica em algum momento. O grande debate, há mais de quatro décadas, envolve o tipo de fluido mais recomendado durante a fase de reanimação.(1,2)
Cristalóides são amplamente disponíveis, baratos e, portanto, considerados o padrão para a expansão volêmica na unidade de terapia intensiva (UTI) em vários centros. Os colóides mais utilizados incluem a albumina humana, amidos sintéticos, dextranos e gelatinas.(3) Destes, os amidos parecem ser os mais utilizados.(3) Seu uso é mais comum em países europeus do que nos Estados Unidos.(4) Os colóides possuem a vantagem teórica de permanecer mais tempo no intravascular, o que garantiria um efeito expansor melhor com a necessidade de menor infusão de volume.(4) Seu uso, entretanto, não está isento de riscos e existem sérias preocupações quanto ao efeito de alguns colóides sobre a coagulação e a função renal.(4)
Os amidos (hidroxietil amidos - HES) vêm ganhando popularidade recentemente e são os colóides preferidos em vários serviços.(4) Amidos são polissacarídeos similares ao glicogênio, derivados do milho ou de batata, compostos por D-glicose polimerizada e com ramificações aproximadamente a cada 20 monômeros de glicose. Para evitar a degradação pela amilase circulante, grupos hidroxil são substituídos por grupamentos hidroxietil. Estes grupamentos são ligados em posições variáveis na cadeia de carbono (especialmente C2, C3 e C6). Quanto maior o grau de substituição (ou seja, quanto mais frequente) e maior o número de substituições realizadas no carbono C2 (quanto comparado ao C6), maior será a meia-vida do amido na circulação.(4) Além disso, quanto maior o peso molecular do amido, mais lenta será sua degradação. A denominação do amido envolve sua concentração, seu peso molecular e seu grau de substituição (por exemplo, 6% 130/0,40).
Os primeiros amidos disponíveis possuíam alto peso molecular (entre 480-670 kDa) e grande grau de substituição (acima de 0,7), sendo chamados de hetastarches. Estes compostos possuíam meia vida plasmática longa e importantes efeitos sobre coagulação.(4) Ao longo das últimas décadas, amidos mais modernos foram desenvolvidos, com pesos moleculares médios cada vez ­menores e com menores graus de substituição. Amidos "modernos" (chamados de ­tetrastarches) possuem um peso molecular ao redor de 130 kDa e um grau de substituição próximo de 0,40 (6% HES 130/0,40).
Possíveis efeitos deletérios dos amidos envolvem coagulopatia e lesão renal, além de reações anafiláticas e prurido por depósito subcutâneo do material.(4) A coagulopatia induzida pelos amidos parece ser mais importante com o uso de soluções mais antigas, especialmente as de alto peso molecular e elevado grau de substituição. Compostos mais modernos possuem uma vantagem teórica de causar menos coagulopatia.(5) A lesão renal também é uma importante preocupação com o uso de amidos. O Estudo VISEP(6) foi um ensaio europeu multicêntrico e fatorial (do tipo 2 x 2) que comparou o uso de controle glicêmico restrito com o convencional e expansão volêmica com cristaloide (Ringer lactato) versus pentastarch (HES 200/0,5) na sepse. O trabalho foi interrompido precocemente por motivos de segurança, porém mostrou uma associação dose dependente entre o uso de pentastarch e injúria renal, bem como necessidade de terapias de substituição. Críticas pertinentes foram feitas a este estudo, incluindo as altas doses de amido utilizadas e o fato de ter sido realizado com um amido de geração ­anterior aos compostos mais modernos que aparentemente estão associados com menor disfunção renal.
Assim, visto as dúvidas sobre a segurança do uso de colóides e seu maior custo, é questionável se utilizar estes compostos traz qualquer vantagem sobre a expansão com cristaloides. Uma recente metanálise do grupo Cochrane(2) conclui que não há evidência de que o uso de amidos após trauma ou no pós-operatório esteja associado com menor mortalidade e questionava o uso destes compostos fora do contexto de um ensaio clínico.
Para tentar expandir o conhecimento sobre a eficácia e segurança dos amidos na doença crítica, a sociedade australiana e neozelandesa de terapia intensiva (ANZICS) juntamente com o George Institute for National Health iniciaram em abril de 2010 o estudo CHEST (The Crystalloid versus Hydroxyethyl Starch Trial).(7) Este é um protocolo multicêntrico, randomizado, duplo-cego, envolvendo 33 centros na Austrália e Nova Zelândia. O trabalho tem previsão de duração de 21 meses e planeja incluir 7000 ­pacientes. Este tamanho de amostra garantirá ao estudo um poder de 90% para detectar uma diferença de mortalidade de 3,5% ou um aumento no risco relativo de falência renal de 1,5 entre os grupos. Nesse protocolo, pacientes que necessitem de ressuscitação volêmica após a admissão na UTI e que apresentem algum critério de necessidade de expansão volêmica (taquicardia, baixas pressões de enchimento, hipotensão, redução da diurese, entre outros) serão randomizados para receber salina 0,9% ou HES 130/0,4. A dose máxima permitida será de 50 mL/kg/dia de solução (o que corresponde à dose máxima recomendada de HES 130/0,4). Caso o paciente necessite de volumes maiores, salina 0,9% será administrada até o término do período de 24 horas. O mesmo fluido será utilizado durante todas as provas volêmicas necessárias durante 90 dias seguintes ou até a morte do paciente e a meta primária do estudo será comparar a mortalidade em 90 dias entre os grupos. ­Importantes desfechos secundários serão avaliados, ­incluindo ocorrência de injúria renal (avaliada pelos critérios RIFLE, SOFA ou pela necessidade de terapia de substituição renal), ocorrência de outras disfunções orgânicas, tempo de estadia na UTI e qualidade de vida após alta da UTI. Estão previstas análises de subgrupos em pacientes com traumatismo crânio-encefálico, pacientes com sepse grave, traumatizados sem traumatismo crânio-encefálico e pacientes com insuficiência renal crônica sem necessidade de diálise ambulatorial. Será ainda realizada uma análise econômica incluindo custos da terapia.
Paralelamente ao CHEST, um estudo europeu intitulado 6S (Scandinavian Starch for Severe Sepsis/Septic Shock trial),(8) está em andamento para avaliar a segurança e os efeitos do HES 130/0,4 em pacientes sépticos internados em UTI. Muito embora o valor da amostra a ser incluído é muito menor do que o trabalho australiano, o 6S incluirá apenas pacientes sépticos nos quais uma prova volêmica é necessária.
A expectativa é que ambos os estudos mencionados acima ampliem o nosso conhecimento sobre a eficácia e ­segurança dos amidos. A inclusão de uma análise econômica no CHEST é muito bem vinda. Entretanto, tanto o estudo CHEST quanto o 6S já nascem com uma importante crítica: A reposição volêmica baseada exclusivamente em amidos não é uma prática comum. Quando utilizados, amidos fazem parte de uma estratégia que costuma envolver cristaloides e colóides em proporções variadas. O uso único de amidos durante a reanimação, portanto, pode não refletir a prática habitual, além de potencializar eventuais efeitos adversos da substância. A realização de estudos envolvendo uma ressuscitação balanceada entre cristalóides e colóides os aproximaria significativamente da prática clínica habitual. Contudo, há de se reconhecer que a exeqüibilidade de um estudo com estas características é por demais complexa.
Assim, não há dúvidas de que o estudo CHEST será um marco na já longa história dos colóides na doença crítica. Todavia, o estudo não responderá se o uso de uma reanimação mista envolvendo cristaloides e colóides ­influencia no desfecho do paciente.
 
http://www.rbti.org.br/download/artigo_2011427164215.pdf

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